Afinal, quem tem cacife para falar de Literatura?

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Antes de qualquer coisa é preciso esclarecer que esse é um post em resposta a um vídeo feito pela Tatiana Feltrin em seu canal no youtube. 

No vídeo, cujo título é “Afinal, quem tem cacife para falar de literatura?”, são propostas duas perguntas:

1) Quem  (ou o que) determina quem tem ou não cafice para falar de literatura?

e

2) As pessoas que não conhecem teoria literária podem falar sobre literatura?

Vamos às respostas.

Há duas formas de se analisar um livro (e filmes, peças de teatro, lugares para serem visitados, etc).

Primeiro, podemos tomá-lo subjetivamente: nessa situação, resumidamente,  avaliamos se gostamos ou não de ler algo e por quê; quais sensações nos foram transmitidas durante a leitura,se conseguimos nos divertir,  se a história é empolgante, dente outras coisas, o que nos levará, invariavelmente,  a uma gama de diferentes respostas. É o tipo de análise que vemos mais frequentemente.

E isso ocorre porque cada um experimenta um livro de maneira singular, graças às diferentes experiências que tem ao longo da vida (aí incluídos, é claro, os livros lidos).

Por exemplo: quem já leu um livro de mistério e pretende ler um outro livro de mistério terá um parâmetro diferente daquele que nunca leu nada desse tipo. Pode se surpreender, se a proposta for nova, ou pode simplesmente achar que é ruim porque a história é uma exata cópia da outra. Ou pode ainda achar que a história é bem melhor que a anterior e mudar a própria visão sobre o que já lera. As opções são infinitas. Mas é assim que as coisas acontecem.

Por outro lado, ao analisarmos um livro objetivamente, despimos-nos de nossa carga subjetiva e passamos a encará-lo de maneira crua, livre de sentimentos e experiências pessoais. Assim o tomamos como uma produção de um autor que é humano e, portanto, capaz de acertar e errar e que, por isso mesmo, pode ou não nos agradar, em razão de conseguir  atender  ou não a determinadas regras que que consideramos como corretas. Nesse momento levamos em consideração fatores objetivos, como adequação da escrita ao público-alvo, domínio da língua, se tem uma história bem construída, etc.. O resultado será o mesmo da hipótese anterior. Ou se analisa positiva ou negativamente, mas por diferentes critérios.

Conclui-se que para se falar dessa maneira é preciso que se tenha algum conhecimento a respeito de gramática, semântica, tradução, etc.

Um leigo certamente não teria como ir muito longe e acabaria por incorrer em equívocos, subaproveitando a obra ou a desvalorizando.   

Isso, obviamente, ocorre somente no plano das ideias.

Afinal, nenhuma análise consegue ser totalmente objetiva nem totalmente subjetiva. Em geral, pendemos para o subjetivismo, porque ninguém, em lugar algum, consegue ser totalmente isento, justamente pelas razões já apontadas.

Cada um vivenciou experiências diferentes, que repercutem invariavelmente na forma como a pessoa vê o mundo.

Na maioria das resenhas e interpretações que fazemos costumamos misturar os dois estilos. Além disso, se resenhas fossem bastante imparciais, já não teríamos resenhas, mas artigos científicos (o que tiraria um pouco do divertimento da coisa). 

Falar sobre literatura também é falar sobre interpretação. E interpretar, ao contrário do que muitos pensam, não é só dizer o que se entende do texto. Vai bem além disso. Interpretar é buscar o real sentido do texto.

Ocorre que, na grande maioria das vezes, um texto tem muito mais do que um sentido possível, nem sempre visível para o próprio autor e para seus leitores (em razão principalmente de o texto literário conter muitos elementos figurados e de as palavras teimarem em ter significados variados ). Se, por um lado, isso pode ser bom, pois instiga os leitores, por outro, o texto pode ser tão complexo, tão truncado, a ponto de se tornar inacessível.

Apesar de tudo, é preciso considerar que há um limite semântico intransponível. Um texto não permite interpretações infinitas. A interpretação possui como limite o próprio texto. O texto permite mais de uma interpretação, mas ao mesmo tempo ele mesmo a limita.

No quesito literatura, essa liberdade, entretanto, é maior, porque, querendo ou não, todos aqueles que leem tem um ou outro conhecimento sobre o tema, embora isso não passe de algo muito superficial. O que não é reprovável, já que na maioria das vezes encaramos a literatura simplesmente como entretenimento.

Mas, afinal, quem tem cacife para falar sobre literatura?

Tal pergunta pode ser respondida de duas maneiras.

Se fôssemos respondê-la de maneira completa, procuraríamos compreender o que significa literatura, quais suas acepções,que parâmetros sustentam a crítica literária. Em todos esses aspectos, como nas demais áreas do conhecimento, devem existir inúmeras polêmicas e diferentes opiniões a respeito do assunto. Não temos tempo, espaço nem conhecimento para isso.

Numa análise mais simplória, podemos responder essa pergunta com outras, como por exemplo, quem tem cacife para falar sobre Física? Um aluno de ensino médio ou um cientista que é PhD em Física? Quem tem cacife para falar sobre Veterinária? Alguém que tem um cachorro doente e que conseguiu tratá-lo com um remédio caseiro que aprendeu com os avós ou alguém que estudou cinco anos, fez residência na área, montou um consultório e trabalha há anos com isso? Quem tem condições de defender melhor alguém em juízo? Um Advogado que atua há anos na área e já saiu vitorioso diversas vezes ou um estudante recém-formado de Direito? A resposta nos vem quase que involuntariamente à cabeça.

Acreditamos que físicos sabem mais sobre física do que estudantes do ensino médio, que advogados que atuam há muito tempo na área sabem mais de direito do que um recém-formado, que veterinários sabem mais sobre como tratar de um cachorro doente do que alguém que aprendeu com os avós como fazer um remédio caseiro,  porque simplesmente é assim que vemos as coisas no dia-a-dia.

Ou melhor, falamos isso graças a uma questão de segurança, graças a um consenso geral e, normalmente, tácito de que quem conhece e estuda o tema tem muito mais propriedade (cacife?) para falar sobre ele do que quem não o faz, porque conhecendo-o melhor é menos provável que fale besteira, que cometa erros e que nos passe uma versão mais próxima da realidade (ou seria da verdade?), tornando-se assim uma fonte mais confiável.

É evidente que essa não é uma regra imutável. Pode acontecer de uma pessoa mais “inexperiente” às vezes ter menos capacidade para fazer algo do que outra supostamente menos “experiente”. Mas essa não é a regra.

As pessoas podem falar sobre literatura sem ter conhecimento de teoria literária?

Sim, mas sabendo que quem não conhece o tema tem muito mais chances de falar bobagens do que quem conhece, justamente porque, em geral, tem menos “cacife” para tanto. Exceto, é claro, quando se trata de uma exposição estritamente subjetiva, como apontamos no começo.

Nesse caso, temos a liberdade (necessidade?) de dizer o que quisermos sobre os livros que lemos e os autores que conhecemos e admiramos.

Assim é que é possível dizer que cada um de nós determina, através de pequenas atitudes que às vezes nos passam despercebidas, quem tem ou não cacife para falar de Literatura, segundo uma regra mais ou menos geral e, muitas vezes involuntária, de quem quem sabe mais pode falar com mais propriedade.

O problema é que essa regra muitas vezes convive e é suplantada por outras baseadas somente em critérios unicamente pessoais, a ponto de muitas vezes ser esquecida. 

Num espaço pessoal que alcança facilmente um grande número de pessoas (como um vlog, um blog, um artigo numa revista, e, em geral, a maioria dos lugares na internet) cada um fala para quem quiser ouvir segundo seu próprio ponto de vista e dentro de seus próprios objetivos.

Vivemos em um mundo novo (admirável?), em que a Internet possibilita que nossas mensagens cheguem a muitos em questão de segundos, de maneira que a responsabilidade pelo que falamos se torna ainda maior. Se todos falássemos somente sobre o que sabemos com segurança, certamente que poderíamos evitar certos equívocos. Embora algumas vezes isso não fosse tão divertido e dificultasse inclusive a disseminação do conhecimento, que, como bem se sabe, não se constrói isoladamente, mas em conjunto, dialogicamente.  

O analisar, subjetivamente, é uma coisa. O analisar, objetivamente, é outra absolutamente diferente, porque ambos são pautados por parâmetros, por regras diversas.

A competência para se falar sobre algo com mais “propriedade” é algo que se constrói. Algumas vezes podem ser resultado de anos de estudo, outras podem decorrer de posicionamentos de alguém que optamos por seguir por considerarmos brilhante.  

Não obstante isso, é preciso admitir (e ter humildade para isso) que existem pessoas que sabem mais sobre determinados assuntos do que outras.

É preciso reconhecer que talvez você não tenha se divertido tanto lendo certo livro porque não tem capacidade, maturidade suficiente ou não está no momento adequado para apreendê-lo no seu todo (pode ser, inclusive, que esse livro nem seja lá essas coisas todas que dizem). Isso porque todos sabem que, ainda entre os mais entendidos em determinados assuntos, existem discussões, algumas milenares, sobre certos temas que não acabam nunca e que prometem se esticar por um longo tempo.

O certo é que existem certos parâmetros que nos permitem assegurar com razoável nível de certeza o que é bom ou não, numa perspectiva objetiva. E que subjetivamente as opiniões serão infinitas e que precisam ser respeitadas (ainda que nem sempre corretas).

Ignorar critérios que muitas vezes são resultado de muitos anos de estudos, desconsiderando ou mesmo desconstituindo algo pelo simples fato de não se adequar aos seus critérios “pessoais” de análise, não é postura que deve ser incentivada ou mesmo valorizada.

Por isso é que acredito que ninguém melhor do que eu, para, segundo meus próprios critérios subjetivos, decidir em que tipo de pessoa ou opinião vou considerar mais relevante que outras, que tipo de livro vou considerar bom ou ruim dentro do meu próprio espaço e âmbito de liberdade de expressar o que digo e o que penso.

Mas é inegável que, objetivamente falando, algumas pessoas, certamente, tem mais capacidade que outras para me dizer o que é bom ou não, o que é certo ou errado, o que é verdade ou mentira, segundo certos parâmetros objetivos de conhecimento a respeito de determinada área.  

A discussão não se esgota por aqui. Ao contrário, ela vai e necessita ir muito além. Porque abrange um sem número de aspectos.

Mais importante do que tudo isso é dar a oportunidade de todos falarem e dizerem o que pensam.


Mas essa já é outra história. 

Um comentário:

  1. Tenho cacife pra postar o primeiro comentário do blog, beijinhos. Adorei o texto! Escreva sempre, Padawan :))
    M.

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